segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

BORBOLETAS AZUIS com exercícios de final

Sentado nos seus calcanhares, Caju assistia atônito a carnificina entomológica que se apresentava aos seus olhos. Circulando em torno do cadáver esbelta, como imagino que índios antropófagos rodem em torno do prato do dia, as formigas puxavam para todos os lados as asas azuis da borboleta inerte.
O cadáver da borboleta ainda estava muito fresco, suficientemente fresco para impedir o desmembramento das asas. O frescor do ar não permitia que qualquer fedor incomodasse as narinas de Caju, que aproximava os olhos do espetáculo em miniatura sem esboçar muxoxos. Na verdade, não era o vento úmido que dispersava os odores de putrefação. O certo é que as borboletas não apodrecem.
- De onde vem as Aleluias, Vó?
- As Aleluias são formigas pequenininhas que criaram asas.
- Humm...
- E você sabe de onde vem as Tanajuras?
- As tanajuras devem ser as formigas grandes.
Então, Caju ficou esperando a época das Aleluias. Elas haveriam de nascer com asas azuis iguais as da borboleta digerida. Bem dizia sua mãe que se ele comesse o bife do boi ia ficar forte igual um touro. Vá lá que Caju ainda estava franzino como um bezerrinho, mas tudo bem. Também as formigas ainda rastejavam pela pia. As aleluias haveriam de bater suas asas azuis tanto como ele ia ser forte como touro. Ia esperar. Contou pra avó, quase que lhe prometendo, que as Aleluias da próxima estação teriam asas azuis de borboleta.
- De onde você tirou isso, menino?
- A senhora vai ver!
(Se você quer um conto curto, pare aqui.)
Passaram-se os tempos da jabuticaba, da manga e da goiaba. Passaram-se os tempos das cigarras, dos pernilongos e dos besouros. Até que, enfim, as aleluias começaram a rodar nas lâmpadas como índios antropófagos rodam em torno do prato do dia. Era o grande dia. Ninguém ia acreditar. Alcançou uma no ar. Interceptou seu vôo. Decepção...
Mas não podia ser, aquela Aleluia sem cor talvez não tenha comido a borboleta. Ia checar outras.
Caju correu até a cozinha. Escolheu uma panela bem areada e reflexiva, encheu-a d’água e a levantou bem perto da lâmpada. Como Narciso, as Aleluias viam a luz no fundo d’água e mergulhavam convictas rumo à perdição luminosa. Boiaram para análise.
Não podia ser! Onde estavam as Aleluias de asas azuis?
Caju não ousava levantar os olhos para a avó na hora das refeições. Será que ela já tinha descoberto a sua falsa profecia? Claro que não: ela já estava caduca.
No outro dia, localizou uma biloca de Aleluias. Foi fácil encontrar o buraco que fazia brotar formigas aladas, pois havia muitas asas nada azuis espalhadas por ali, enchendo os sulcos das pegadas dos pássaros que haviam montado guarda, porque, afinal, biloca de Aleluia é restaurante de passarinho. Compadeceu-se das Aleluias que morriam na praia, tal como nos compadecemos dos aviões que, circunstancialmente, explodem nos hangares. Mas precisava engolir o dó, agir friamente, montar guarda. Ao entardecer o buraco cuspiria milhares de Aleluias.
Por volta das cinco começaram a sair as primeiras, ainda rastejantes. Em minutos, bastou abrir o saquinho plástico na boca, tal qual se para uma caneca plástica na bica. Correu com as aleluias pra casa. Sondou o caminho da sala. Livre passagem. Alcançou o quarto. Abriu a gaveta, pegou a tinta atóxica e o pincel de pêlo de rato extra-fino e pintou, uma por uma, todas as asas com bolinhas azuis. Elas conseguiam voar! Então, começou a soltar as Aleluias-Borboletas por baixo da porta que dava para a sala.

Final 1

- Veja vó, as aleluias azuis que eu falei! – apontava o lustre com o dedo todo azul.
A avó conteve reações e fingiu que não viu. Para disfarçar, fez um teatro para o neto:
- Mas que coisa incrível! Será que essas aleluias comeram borboletas azuis?
Caju morreu com a certeza que a avó era caduca.

Final 2

Quando enfim pintou o último exemplar da nova espécie que deus esquecera de criar, abriu a porta da sala para mostrar pra avó que as aleluias eram azuis.
-Vó, Vó! Viu as aleluias azuis?
A cadeira de balanço ainda balançava. As aleluias, inexplicavelmente, não estavam girando no lustre pontilhado de merda de mosca. Estavam todas pousadas, silenciosas, no rosto frio da avó morta que balançava na cadeira.

Final 3

As aleluias azuis foram o comentário predominante da hora do jantar. A avó, encabulada, chamou o pai do menino de lado.
- Já faz um tempo, Pedro, o Caju me falou que as aleluias iam ser azuis. É um milagre! O menino é profeta, Pedro. Vamos levá-lo pro Vaticano!
E lá se foram avó e neto pra Roma, marcar uma audiência com o Papa. A velha oferecia queijos e doces aos cardeais, todos aceitavam o agrado da propina, mas nenhum agilizava a análise do caso do menino. Os dois perambulavam pelas ruas da cidade eterna, tentando convencer, em língua bárbara, os transeuntes do milagre e da fome.
Foi quando a fome insistiu que Caju desistiu de insistir no milagre, e contou a verdade para a avó. Ela deu-lhe uma surra sem precedentes, mas não haveria de perder a viagem. Os italianos até acreditavam em lágrimas de sangue, chagas abertas, possessões demoníacas, fogo eterno e purgação que não havia nenhuma razão pra não acreditarem em aleluias azuis.

* Para o Oliver, que estava junto quando veio a idéia.
**Imagens do pintor surrealista russo Vladimir Kush.

Um comentário:

  1. Fico com o final 2,
    nada mais absurdo e fantástico que o real.
    Vladimir Kush me faz pensar que nem só de vodca e filósofos tristes se faz a Rússia.


    grande abraço Max, ah! antes que eu me esqueça, já inscrevo nos tropheos de minhas vittorias amorosas que OVIDIO FOI MEU MESTRE!

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